quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Só eles sabem



Era cedo, me olhei no espelho e percebi que já não queria mais mudar de nome.

(...)

Sempre quieto, com os olhos bem abertos. Minha mãe costumava dizer que eu tinha olhos gigantes. Nada escapava deles. Ouvia bastante também. Os sons pareciam interessantes, estimulavam minha imaginação. O mundo sempre pareceu grande demais, mesmo não sabendo ao certo o que ele era. Eu estava ali, era só isso.

As outras crianças eram energéticas, barulhentas e não sabiam brincar sozinhas. Às vezes até me interessava por seus movimentos e berros, mas na maior parte do tempo deixava tudo de lado e imergia num oceano de imaginação e fantasia. Sereias feitas com galhos de árvores, peixes feios de papel, barcos que na verdade não passavam de palitos de sorvete. Não sabia quanto tempo durava o tempo. Sabia que o dia começava quando o sol deixava de ser tímido, que a tarde era a hora em que o estômago roncava e que a noite era o momento de jogar a última rodada de "Rouba Bandeira".

Não precisava ser craque para jogar futebol. Mas era necessário saber a linguagem certa a ser usada. O adversário chegou perto de você, silencioso? Ladrão! E quando o seu companheiro de time estava bloqueado por outro jogador, como passar a bola? Fura, fura! Enfim, não tinha protetor solar, nem caneleiras, nada de chuteiras luxuosas ou médico particular. Mangueiras esguichavam água e as gotas escorriam salgadas para os nossos lábios. Éramos irmãos de verdade. E eu, ainda quieto, observava e participava ao mesmo tempo.

Não entendia a revolta de algumas pessoas, não entendia a maneira agressiva com que me tratavam durante um tempo. Mas ainda assim, mantive a mesma calma que os irritavam. Eles nunca entenderiam. Grandes amigos, grandes amores. Sempre haverá aquela garota linda e simpática que parece ter o melhor perfume de todos. Perfume este que marca vários anos da sua vida e quando você o sente novamente, lembra de toda aquela sensação, daquele ano, daquele aniversário em que você ganhou o melhor beijo. Eles ainda não entendem.

A revolta veio como novidade incrível. O mundo já tinha limites, os amigos deixaram de ser como irmãos, ela deixou de ser linda e simpática para se tornar arrogante e insegura. Eu ainda optava pelo silêncio, mas meus olhos queimavam como brasa ao ver alguma chance de explodir e descarregar toda aquela vontade de destruir. O dia inteiro na rua, sempre com o amigo braço direito. Destruindo muros, destruindo caminhões, destruindo sonhos, colecionando brigas e mediando intrigas. A adrenalina era nosso vício. Sair de skate sem saber se íamos sobreviver. Sair para os shows sem saber se íamos voltar inteiros. O Punk Rock o Hard core, que maravilha!

Você deixar o corpo solto durante o bate-cabeça ou nadar no mar de gente ao pular de mosh são coisas que limpam a mente, só que estragam o corpo. Elas agora são mais agressivas, não têm mais perfume de flor. Agora têm cheiro de cereja, olhos bem pintados e curvas quase perfeitas. Dançávamos errado, experimentávamos novos sabores, novos efeitos. O álcool, os cigarros, o ácido, as balas de canela. No final de semana, tempo para jogar bola na rua com os poucos camaradas que permaneceram. Falar de música era algo incrível. Eu ainda optava por escutar mais do que falar ... Novas conversas, novas bandas, arte e liberdade, igualdade e respeito. O Punk evoluiu dentro de mim e então percebi que já era hora de partir para algo além dele.

A fúria se transforma em Street Art, banda, porres, boxe, distorção e poucos amigos. Surge o Reggae, surge o Hip-Hop, surgem os filmes. Tudo o que observei me fez abandonar a necessidade de nomear as coisas e sentimentos. Ele também surgiu, e de cereja passamos para hortelã. Eu, quieto, prestava atenção em seus movimentos e na sua forma de se esconder atrás de discursos sobre si mesmo. Percebi que o amor muitas vezes morre com o silêncio. Eu era assassino do meu próprio amor. Ele nunca soube ler meus olhos, apenas prestava atenção na minha boca, muda. São várias as maneiras de demonstrar que gosta de alguém, e às vezes escolhemos uma forma que não funciona com certa pessoa. Do copo o que mais conheço é o fundo. Bem vinda: Pura, transparente e relaxante. Fiél.

Política, cultura, jornalismo, trabalho, sociedade, revolução, involução. Tudo caminha ao contrário e as pessoas estão cada vez mais vazias. A realidade é a jaula que prende aquele monstro dentro de você. Aquele ser que poderia dar sentido a sua vida. Alienação voluntária, síndrome de gado, abaixar a cabeça e chorar. Apertar a cabeça do filho próximo aos seios e não ter leite para alimentá-lo. Voltei a ficar quieto como no início da minha vida, agora por conhecer uma parte maior do mundo. Religião, não ser religioso, fé, esperança que pressupõe força. Força que é fruto de poder e poder que escraviza as relações humanas. Conhecimento, tão necessário, tão raro.

É, muita coisa, não? Mas eu sei. Você não? Eu sei. Só os loucos sabem.

(...)

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