Os passos até o centro da cidade não eram largos. Caminhava
conforme a música em seus ouvidos. Trilha sonora por entre os tantos carros à
margem da sua imaginação. Os rostos, aqueles sem som nos ouvidos, pareciam
ranger as rugas de preocupação. Conflitavam com as fotos que iam sendo batidas
dentro da cabeça daquele que, sozinho, tentava fugir de tudo e todos. Sozinho,
mesmo assim fugitivo. As mensagens chegavam aos montes, mas a regra era ignorá-las.
Uma espécie de jogo mental que ele fazia consigo mesmo. Tanto tempo se sentindo
solitário fez com que se tornasse parte do à parte todo. Quando procurava pelas
pessoas, achava-as. Quando era procurado, desaparecia. Ingratidão, insensibilidade,
pouco caso, indiferença. Vão entender sobre tudo, menos sobre depressão. Menos
sobre se tornar inacessível por não ser insensível. Trocar o sentir pelo “sinto
muito, mas não estou”. Vão entender sobre tudo, menos sobre isso do “consigo
mesmo”, sem mais ninguém.
O que comer? Em qual bar parar? Quem eu não quero ver e corro o risco de? Para
onde não ir? O mapa se faz pelos caminhos conhecidos ou pelos desconhecidos?
Por onde ir ou por onde não ir? Escolher a comida e o que beber ajudava a ter
alguma sensação de autonomia. Isso, em partes, também lhe devolvia certa quantidade de serotonina, adrenalina, ou falsa sensação de ter algum controle
sobre aquele vazio imenso. Desenhar o horizonte com a ponta do dedo para, em
seguida, tentar segurá-lo com as mãos. Sentou-se ao fundo, na última mesa,
local íntimo, perto do banheiro e da cozinha, onde se come, é comido, livra-se
do que sobrou e reaproveita os restos. Onde tudo cheira forte, igual gente. O
atendente de sempre, com aquele olhar cotidiano. Conforta encarar um
desconhecido que sente te conhecer pela frequência e não pela intimidade. Tão
perto, mas tão longe. Conseguem sentir o cheiro um do outro. Sobra demais,
exala demais. No dialeto dos cansados, apenas as frases feitas têm valor, pois
facilitam o caminho até o final previsível. É na metade da conversa que eles se
encontram, atendido e atendente, perto da cozinha e do banheiro.
O primeiro gole faz a mandíbula repuxar e arder um pouco. Sua mente sempre lhe
dá o mesmo diagnóstico: é o estresse ciente de que o álcool irá lhe tomar. A
respirada profunda, a garganta mais ainda, desce e vai soprando as feridas. Uma
cura que dói, talvez. Escreveu assim numa das páginas, numa das vezes que
esteve ali, ele. A cena era aquela, sem nenhuma excepcionalidade. Um cara
sentado, sozinho, envolto nas suas questões, envoltas na sua mente, envolta na
angústia sem fim que a tudo tempera. Não tinha ele como dar aos outros as razões
para seu sofrimento. Só sabia que doía de um jeito não compartilhado com os
demais. Era uma dor dele, algo antigo. Um pertence íntimo.
Quando a mordida perdia força e os lábios passavam a pesar mais, olhava ele para o
nada. Diante de si, outras mesas, outras bocas, copos, cardápios, cheiros, mas
ainda assim distantes. No fundo, o íntimo, a cozinha e o banheiro permaneceram com ele e, de tempos em tempos, com o atendente. Bastidores daquele momento,
estão e só. Nada de mais, nada de incrível. Tudo sem novidade. A vida é assim
também. Muito mais assim do que pensa a maioria das pessoas. Momentos especiais
não fazem sempre história tampouco se tornam. Já os comuns, que são feitos para serem esquecidos
enquanto vividos, prematuros, vêm ao mundo para dar adeus e dizer que um
simples segundo pode pesar demais. No fundo, pesa mesmo.
Todas as vezes em que foi até o bar carregava na mente algumas tantas questões.
Problemas no trabalho, em casa, nas relações diversas, problema com o mundo e
com ele mesmo. Esta era a razão para ir sozinho e não responder às mensagens. No
fundo, é íntimo.
quinta-feira, 14 de outubro de 2021
No fundo
terça-feira, 17 de agosto de 2021
Histórias
O toque. Sentia falta do toque. Enquanto ouvia o som a rasgar lentamente meu peito, passei os dedos sobre o telhado das mãos... Estiquei a pele e vi veias. Por conta dos montes de dias comuns, parei de contar os de crise, deixei de contar aos amigos, guardei para mim o que nunca quis, mas aprendi a aceitar. Todos estes anos e eu, hoje, toco minhas próprias mãos para lembrar que escapei de toda a ajuda, todo o tratamento, toda a orientação capaz de me fazer menos eu, mais comum, feito os tais dias. Feitos para serem esquecidos. Ou nunca contados por outrem.
Perguntei-me, “imagine se eu fosse contar a vocês tudo o que já vivi?”. Instantaneamente, as imagens reviraram na cabeça. Estilhaços e mais estilhaços lançados contra meu rosto de dentro, aquele que, mesmo no escuro de pálpebras fechadas, é obrigado a me encarar. Eu vi tantos momentos, preso neles, ou agarrado a eles, às vezes buscando por eles e, ao não tê-los, imaginando-os, eu me vi vendo. Como não consegui me destruir por completo? Não cabia a mim tal tarefa. Ela, que ainda me corrói sem descanso, é quem dará cabo desta tarefa.
A tarefa de angustiar.
Não deveria eu rememorar o passado e sentir de bom grado o gozo dos que venceram a si mesmos ainda que a miséria da própria mente posasse junto às fotos, sorrindo sem os dentes? O teatro que a melancolia montou não me deixa. Na encenação dos meus fracassos, faz-se a verdade que nunca superarei: sou eu quem fecha as cortinas antes dos aplausos, pois diante dos outros, o que espero são vaias. E se elas vierem, serei capaz de confrontá-las. Construí-me assim, ensaiei as falas todas. Agora, se forem palmas, se por acaso me ovacionarem, aclamarem minha existência frágil e rascunhada, meu ensaio, minha certidão de encerramento, meu final, o que farei? Não saber me mata, seca-me o sangue. Eu não sei o que fazer quando me colocam diante daquilo que os ofereço: o melhor de mim no pior personagem que eu poderia fazer.
Preparo-me demais para, fatalmente, sabotar a peça.
O toque ainda me falta. Peço por ele, antes de dormir, no lugar da oração. Há de ser sempre um pedido silencioso, tímido e quente. Quase como colocar as linha da vida sobre a chama da vela. O limite entre dor e prazer se resume à simples necessidade de lembrar a si mesmo, ainda que se arrastem os dias comuns, de que se sente. Dor ou prazer se sente.
Comigo, arrasta-se ela. Conosco, vamos um com o outro, até que o toque nos separe. Feitos para serem esquecidos. Ou nunca contados por outrem.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021
Caminho contrário
Acordar na casa de alguém, sair antes que ele levante, achar uma padaria, pedir um pão na chapa, suco de laranja, pensar "porra, queria ter dormido na minha cama mesmo", sentir cheiro de álcool e suor amanhecidos, colocar o celular no modo avião para não receber um "Cadê você?".
Fiz o caminho contrário, e cada pessoa que passava por mim parecia sentir meu odor com o olhar. Estava frio, típico amanhecer sem graça em São Paulo, cidade dos dias úteis. A cara era a de quem levanta com pressa porque, mesmo no horário, sente-se atrasado e inútil. A desgraçada da estação de metrô não chegava nunca. Tudo o que queria era sentir que já estava perto da minha vila. Ontem tinha sido tão ruim assim? Não sei direito, eu me lembro, mas faço questão - e esforço - de esquecer. Começou a funcionar.
Duas linhas inteiras, uma pela metade, até a estação onde se faz baldeação. A eternidade tentando se vender em vagões, que de vagos só tinham o nome mesmo. Em qualquer horário há sempre gente o suficiente para ocupar todos os bancos, comprar todos os chocolates. Aqueles olhares normais, cotidianos, contados dia após dia útil. Pior era eu que ainda os observava, tentando achar algo ali para me distrair. Inútil. No fundo, inútil era eu, evitando quem fiz questão de não evitar ontem à noite, quando tive a chance. Não queria pegar o celular, a mensagem estaria ali, eu sentia.
Por que evitar? Foi tão ruim assim? Para mim, foi. Para ele, já não sei - e não quero saber, este é o ponto. Há dois momentos na vida em que sentimos calor insuportável que não deixa dormir: quando estamos com medo de algo sobrenatural e nos cobrimos, ou quando estamos com tesão e, sem poder liberá-lo, ele finca sua boca molhada nas costas da primeira orelha desavisada e lambe devagar, até a gente se retorcer no colchão descoberto deixando a saliva pingar. Nem ventilador ligado, nem brisa que entra pela janela conseguem desimpregnar do corpo aquela sensação de querer queimar. É o querer que faz arder, não o calor do ambiente em si, entende? O ambiente tanto faz, tanto fez. É um calor de dentro para dentro, ao invés de para fora.
Passei a mão rapidamente pelo rosto e senti aquele cheiro inconfundível de "agora eu que me vire para conseguir lidar daqui em diante" na ponta dos dedos. O caminho corria, eu voltava até o apartamento pequeno, observava ele dormindo como se nada tivesse acontecido. Não aconteceu, mesmo, e este foi o grande evento dentro de mim. Uma festa clandestina onde era celebrado o aniversário da rejeição. De convidada só havia ela, óbvio, ensurdecida por suas próprias reclamações, ciente de que não tinha ninguém além de si - um amor próprio imposto e inevitável. Durou a noite inteira, varou a madrugada, e eu não pude fazer absolutamente nada. Fiquei sentado, contando a gotas a agonia que me preenchia. Era certeza que, quando o sol nascesse, além da insuportável luz fina que anunciava mais um típico amanhecer sem graça em São Paulo, eu ainda teria que recolher a sujeirada da noite anterior. Levaria o pratinho com o último pedaço do bolo que me dei de consolo. Até então, não era isso que me angustiava.
Eu não precisava ter dormido ali.
Um pão não tinha sido o bastante. Deveria ter comida mais. Bebido mais um copo de suco. Também poderia ter parado em algum lugar e comprado um maço. Voltaria a fumar, assim, depois de ter negado todos os cigarros dele, mentalmente, sem que tivesse me oferecido um. Seria tão bom, mas eu já estava azedo só de ter que lidar com o celular, imagine com caixa de padaria que dá troco de moeda ou cobra 1 conto a mais pra passar um box no débito? Por favor, não estava em condições. Ainda mais com um só pão na barriga. Não. Outro dia. Mais vinte e quatro horas.
Por que eu fiquei? O horário da condução não tinha se encerrado. Eu poderia até ter pago um carro para voltar, ou, de repente, dormir na casa de alguma amiga, amigo, colega, sei lá. Virado a noite num corujão. Só não podia ficar na rua e correr o risco de ser enquadrado, esfaqueado, quem sabe até roubado. Isso não, sem condições. A gente já se fode de trabalhar pra ser tirado de otário no serviço, não tem como virar comédia na rua. Eu sei, fatalidades, lugar errado, hora errada, enfim. Desculpas não faltavam no meu bolso ou na agenda do celular. Fiquei porque quis, porque achei que finalmente minha racionalidade seria vencida pelo inusitado. Quando tirei os sapatos, enchi meu copo pela quarta vez, e fechei os olhos para ouvir músicas que ambos gostávamos, eu já tinha decidido o que me fez ir até ele. São as mentiras que eu conto a mim mesmo que também me angustiam.
Quando eu falo de voltar a fumar, eu não minto sobre tal desejo. Minto quando não fumo e adio para outras vinte a quatro horas este reencontro. Eu finjo que me engano e sigo fingindo ser enganado. Eu finjo uma data para o reencontro. Talvez seja eu um completo irresponsável sentimental nesse joguinho todo de negação. Só que é assim que eu consigo fazer com que todo dia não seja o dia, a hora, mais do que vinte e quatro. Eu conto cada cigarro do maço, são 22 ou 20, se não me engano. Mas não fumo, ainda, porque preciso acreditar na minha mentira e preciso me enganar acreditando. Sigo nessa dança solitária que é conviver consigo mesmo quando se pensa demais, planeja demais, estrutura demais, sem admitir que o verdadeiro desejo é o de soprar fumaça no castelo de cartas e ver tudo ruir.
Disse a ele que não poderia ficar, podendo; que eu tinha que tomar pelo menos um banho para o dia seguinte - e isso era a mais pura (talvez a única) verdade-; que era meio de semana ainda, sem que isso fizesse diferença qualquer; que eu ia dormir logo - um desejo real, mesmo sabendo que não conseguiria dali para frente. Ele ouviu, acreditou, concordou com tudo, e teve o que queria: eu, ali, contra a minha falsa vontade de não ficar. Menti para mim mesmo achando que não valsaria sozinho esta farsa.
Falta apenas um ônibus e chego em casa. Dentro dele, já sinto tudo menos decadente. Talvez porque o caminho passasse pelas tantas vielas que adentrei ao longo das minhas três décadas. Era gente abrindo o comércio na garagem de casa, cheiro de produto de cabelo nos salões com tamanho da caixa de fósforo do jornaleiro bicheiro que acendia aquele cigarro matinal, tão ritualístico quanto meu vício de mentir para mim mesmo buscando manter uma saúde que não tenho. Melhor, que não me importo em ter, mas tenho medo de perder. Eles indo, eu voltando. Eles começando, eu torcendo para acabar, torcendo para terminar aquele caminho contrário.
Precisava dar um sinal de vida. Tirei do modo avião. Não tinha mensagem dele. Havia se passado mais de duas horas desde que saí. Ele já deveria ter levantado. De repente, levantou e não se deu conta de que eu tinha partido. Foda-se, melhor assim. Eu não saberia o que responder se ele me perguntasse por qual motivo saí às escuras. Diria que era meu jeito? Provavelmente. Assim ele desistiria de entender. Eles sempre desistem.
Desci dois pontos antes do meu. Sem condições de ficar sentado naquele banco a sacolejar. Além do mais, eu gostava de andar a pé. Na verdade, eu preciso, é uma necessidade. Andar me faz pensar que não estou pensando demais. Cada passo busca distração qualquer que tire de mim alguma conclusão do que vejo, ouço, farejo. Volto a ser criança dentro do fusca de meu tio, indo para Itaquera, observando as luzes da cidade refletidas no vidro cheio de gotas esparramadas sobre o cobre dos postes de mercúrio. Lá, naquela lembrança, eu andava sem precisar dos meus pés. Era o mundo fazendo um caminho contrário.
Dona Hermínia enrolava a sacola de feira. A vista cansada ainda conseguiu me alcançar. Deu sua benção e um sorriso largo que redesenhou todas as marcas naquela pele preta vívida e vivida. Benção de dedos tortos, bem vividos também. Era o que eu precisava. Cruzamos nossos destinos e dissemos, um ao outro, qualquer palavra de proteção. Vá e volte, Dona Hermínia. Que o tomate não esteja o roubo de sempre.
Ali, um quarteirão antes da minha cama, as pessoas não me olhavam. Eu me tornava invisível. Mais um, ali, indo. O que eles não sabiam é que, na verdade, eu fazia o caminho contrário.
[Mensagem]
Ele: Dormiu comigo ontem para sair assim, sem dizer tchau?
Eu: Pelo contrário.