Nem todas as minhas histórias foram tristes.
Não sei se era o jeito que você molhava os lábios ou me olhava. Ambos, secos. Ambos feitos pra se sentir tocando a pele. Eu estava na fase mais perdida da minha vida, onde só enchia o corpo quando enchia o copo todo e torcia dia após dia para que a terra virasse um grande deserto; que na beira da estrada eu te encontrasse pedindo carona com uma garrafa na mão e pronto para abastecer meu tanque cardíaco; que a gente se apagasse pelo horizonte, sem futuro, sem promessas, sem destino, sem planos. Nada mais do que a época da vida em que a embriaguez fazia com que sonhássemos de olhos abertos, enquanto sol estalava no teto do quarto. Era bom, sim, sentir o suor escorrendo e você bebendo do sal que saía da minha alma. Refrescava quando seu cabelo tocava meu peito e se espalhava pelo abismo, buscando abrigo nas profundezas. Você em mim. Era o seu deserto. Era o meu espaço.
Corríamos contra o tempo, o tempo todo. A gente se dava bem porque não se dava com mais ninguém.
Eu odiava o mundo, as pessoas, os deveres, eu odiava a música alegre, as cores fortes, os corpos perfeitos, os cabelos sedosos, eu odiava as capas de caderno com fotos de praias, odiava a escola, odiava os homens, odiava os perfumes alheios, odiava as vozes altas dentro de casa, odiava as vozes baixas dentro da cabeça, odiava os olhares, eu odiava as garrafas vazias, odiava a polícia, odiava deus, eu odiava a paz. Em meio à toda essa desgraça, a gente viu graça um no outro. Você odiava o mesmo que eu e daí nasceu o amor, bem bruto, bem grotesco, bem nosso - e o mundo teve que aceitar. Eram dias e noites deitados no chão do meu quarto, no telhado da sua casa, olhando para alto, vendo aquele céu forrado de madeira e estrelas enquanto o álcool corria para alcançar nossas veias. Só ele nos alcançava. Estávamos altos demais pros demais.
Eu fumava do seu maço e você do meu. Você escrevia no meu caderno e eu no seu. Eu te vestia de mim e você me emprestava suas pulseiras. No outro dia, acordava sem ter você ao lado, fisicamente, mas quando saía da porta do quarto, a sensação era de ter todas as armas presas ao meu cinto: pronto para o abate. Era o cheiro da lembrança misturado ao do cigarro - eu sei, eu sinto. Era o seu maço.
Pelas ruas caminhávamos em silêncio, imaginando futuros e mais futuros em que tudo daria certo: nosso estúdio de tatuagens, nossa banda, nossa vingança contra tudo e todos. Queríamos a batida do caos sempre no volume máximo, conduzindo os dois corpos desérticos pelas esquinas; e quando nos sentávamos em alguma calçada para recuperar o fôlego, era nos seus joelhos que eu descansava os pensamentos. Não sabíamos fazer carinho, era pele e osso, pouca maciez, mas quando as mãos se encontravam, toda aridez das nossas palmas virava areia e a ampulheta do desejo deslizava rapidamente. Você acendia o cigarro entre meus lábios, dividia ele comigo, mesmo sendo do seu maço.
Os dias e anos se passaram. Você mudou. Tornou-se tantos outros no deserto dos meus dias. Escorreu pelos cantos daquela imensidão alaranjada que eu sempre quis alcançar. Hoje você me busca de dentro de mim todas as vezes que as velas se apagam. Some, mas não sai de mim. Volta, faz com que eu me sinta novamente na beira da estrada, pulando de bar em bar, sem cansar, só caçando algum lugar pra ficar. Hoje você me conduz até para fora da luz e se cobre de azul durante a noite toda, tingindo cada parte dos meus cantos. Hoje, abro os olhos e me vejo sobre seu rosto, com o hálito quente, fervendo, escorrendo vontade pra que chova em cada marca que te marcou, em cada fresta aberta na sua cara. Hoje, eu me abro feito um cânion quando seu toque quebra o silêncio e as rochas que me cobrem e espantam os forasteiros. Hoje, eu não fumo mais.
Mas o último cigarro que fumei foi do seu maço.