Um rastro de pólvora risca o meio da minha coluna. Desenha o
caminho percorrido pela fúria quando, num instante qualquer do dia, sinto a
implosão ruir tudo dentro de mim. A raiva, que há anos me acompanha, abre
lentamente a caixa e pega um palito. Verifica sua ponta, aprecia aquele tom
rosado, cômico, inocente e, então, risca-a com a superfície seca de seus lábios
até que a faísca é invocada. Ela se aproxima do meu corpo, deita sobre mim,
sussurra em meus ouvidos, “Não respire fundo”, e deixa que caia o fósforo sobre
o pó acinzentado.
Cada segundo queima.
Vão por vão da espinha, sinto a quentura
se aproximando da nuca.
Ah, se eu pudesse descrever a raiva que sinto...
(...)
Sob o olhar do lorde, os corpos ajoelham-se vazios,
famintos, confinados na miséria da própria existência. Ele, antes um deles,
brilha como sol gelado dos confins do esquecimento, reluzente feito pedaço de
universo, escuro na pele, brilhante nos detalhes. Cegado pela raiva, penetra
com o par de olhos opacos em meio à legião que o cultua. Percebe que a angustia
traz aos seus a impotência da ação e decide que é do seu sangue que precisam
provar. Do pó de si mesmos, erguem-se os caídos e seu lorde sopra em seus
ouvidos o mandamento apagado: “Não respirem fundo”.
(...)
Pistola. Ferro. Peça. Há dias (quase todos) que ando pelas
ruas engatilhado. Ando no gingado do bumbo que gira pelo bairro em busca de
buraco pra muquiar as balas - aquelas ideias que não são trocadas. Saio com vários pensamentos ricocheteado na cabeça e,
com o pente destravado, olho pros lados na fissura de um algo – ou de não ser
alvo – como se algo ou alguém estivesse vindo pro arrebento. É puro tormento. Eu suo, eu soo,
mas não corro. Todo dia o corpo endurece com se tivesse sido furado, só que não
– ele está sempre preparado. Saio de casa sem dar adeus, porque pode ser que
alguém ouça e impeça minha volta. Eu só saio, caminho, caço, deslizo, vou pela
sombra porque nela eu sumo, não sou visto, não sou encontrado, fico no rastro
de pólvora na estrada das costas dele, preparando o berro pra sussurrar na
esquina da sua cabeça: “Não respire fundo”. Um corre, o outro escorre.
(...)
De longe, ele observava o movimento da boca à sua frente.
Incrédulo, parecia não reconhecer mais aquele rosto. Era, agora, uma mistura de
cinzeiro cheio de água com jornal molhado. Algo indesejável, incompatível com a
figura que antes tinha direcionado seus sentimentos. Aos poucos, o estado
hipnótico foi passando e então a temperatura crespuscular que misturava tons
frios e quentes beijou-lhe a pele. Um arrepio, uma sensação de formigamento no
rosto, suor nas mãos, secura na boca. A traição. Sua comida favorita sendo
servida fria ou sem sal. Um prato vazio – e você sem vontade de cozinhar. Há
fome. Muita. Mas ao invés de dormir para que ela passe, você ferve de raiva. A
água quente na panela de seu peito começou a evaporar e ele, possesso pela
raiva que ria de sua cara agora em banho-maria, ajeitava a espinha como nunca
antes. Totalmente ereto, o outro lhe observa assustado e diz: “Calma! Respire
fundo”.
Não.
Não.