domingo, 2 de outubro de 2016

Pressão alta

Todas as vezes que o teto ficou mais baixo e minha pele gelou, eu tive certeza que minha maldição seria a pressão baixa. O cair do ritmo, esfriar do sangue, a sensação de ser apenas um detalhes prestes a desaparecer. Comecei a reparar em quais situações eu me sentia assim, baixo, doente e disperso. Eram sempre os momentos em que eu me permitia perder; não mais carregar o fardo de ser vitorioso - ou sobrevivente. Eu me permitia não ser; não fazer; não falar; não caminhar; não olhar; não ouvir; só sentir. Minha pressão caía justamente quando os sentimentos subiam à flor da pele e, num momento de ebulição, evaporavam a vontade de viver. De continuar. De fazer tudo o que não fiz - por fora. Mas vivi por dentro.

A lentidão ao meu redor conduzia a dança que nunca tive. Agora, eu descreverei como é a descida.

Passo a cada passo, eu me firmo. Ando como se nada tivesse acontecido. Finjo não ver o que está estampado diante de mim: um mundo estranho; um ambiente pequeno demais - apertado demais; eu caminho como se nada tivesse acontecido, mas eu sei que aconteceu. Sei porque eu desapareci de mim. Passo a cada passo, eu desço para conferir os ruídos no andar de baixo. Quando chego, vejo rostos cinzas a gritar. Eles ordenam que eu saia. Eu saio, subo um degrau, mas não é o suficiente. Ainda ouço seus berros. Então, este barulho me tira a atenção. Biologicamente falando, este é o momento em que o "zunido" nos ouvidos tem início. Como um cabo de guitarra mal plugado, ele quebra a harmonia. Tira a paz. Aos poucos, eu me deixo hipnotizar e então, dominado, sofro com o resto do corpo. Os gritos, eles me expulsam de dentro. Obrigam-me a ir para fora.

Desespero. Angústia. Medo. Vergonha. E seu eu desmaiar? E se alguém tiver que me socorrer aqui? E se eu tiver que pedir ajuda? Incômodo. Eu não quero incomodar. Não agora. Não aqui. Mas estou tão mal. Tento lutar, eu juro que tento. Respiro fundo e pausadamente - como me ensinaram -, mas não funciona. Enjoo e então vou perdendo as forças. Tudo gela e seca. Deserto frio no meio do dia, no meio da mesa, da risada, da festa, do ensaio da banda, do beijo, da cama. Quantas vezes eu desci para o andar de baixo e fui obrigado a voltar aos berros? Não pertenço a lugar algum e essa caminhada me tira o fôlego. Eu fico sem ar, torcendo para que termine logo este sofrimento. Mas ele não termina. Porque eu sempre continuo. Sou eu que não termino.

Eu venci a queda.

Infelizmente.

Volto, apático, pendendo de um lado para o outro. Reconheço-me e não gosto do que vejo. Esta é a volta. Assim que eu volto. Em luto, depois de tanto ter lutado para não sucumbir aos caprichos da vida. Ela me disse: por que sofrer tanto? Vá. Eu tento ir, mas volto. E, para piorar, volto o mesmo. Nem melhor nem pior: o mesmo. Aquele zero, ponto de "não partida"; o marco fadado ao esquecimento; nulo; persistente desistente. O zero. Eu volto zerado, sim. É assim que me sinto. Começo a me preencher novamente com vazios. Você entende o que é transbordar de tanto se encher de vazios? Isso se chama pressão baixa.

Pressão baixa é se encher de vazios até não aguentar mais. E quando você transborda, você volta. Do zero. Para lugar algum. Não deixa rastro nem saudade. Apenas volta. Esquece as chaves, mas lembra como entrar na casa pelos fundos. Esquece o cheiro do seu quarto, mas lembra como preencher cada cômodo com sua vontade de não voltar. A pressão cai no exato momento em que eu sou forçado a ser material novamente. Em que o universo me dá um lugar na sala, uma almofada para colocar sobre as mãos e esconder as unhas pintadas. A pressão cai quando eu volto a um lugar que me anula. Que me faz sala, mas não me faz estar.

Ainda assim, se agora estou aqui - situado nas letras, deitado nas entrelinhas - é porque de alguma forma eu consegui subir alguns degraus. Poucos, sim, eu sei. Mas subi. Subi para olhar como estão as paredes. Eu sempre quis paredes bem lisas, pintadas, arrumadas daquelas que confortam ao invés de confrontar. Mas nunca tive. Mesmo assim, subo. Olho e vejo a tinta descascando. Vejo farelos, imperfeições, mas vejo memórias também. Aquelas lembranças que nunca chegam ao andar de baixo. Sabe aquelas memórias que nasceram para ficar no topo do tempo? Refletindo o céu e resenhando o universo? Então, são elas que estão marcadas nas paredes antigas. Eu subo e me vejo novamente no lar. Meu lar. Escondido de tudo e todos, apenas se fazendo a cada instante do passado - num eterno retorno. E é isso que o andar de cima me traz. É isso que me faz subir - que faz minha pressão subir. O lar. Este eterno retorno. Onde eu me reencontro cheio de passado, vivido o bastante para saber que a pele aguentou. Endureceu e aguentou.

É no andar de cima que recebo visitas. Neste andar superior, eu consigo servir um café ou alguma outra bebida; sou capaz de puxar conversa; rir sem querer chorar; abraçar quem nunca perdoei. É neste andar de cima que eu me sinto alto o bastante para alcançar o sol e deixar que ele aqueça o rosto tão marcado. A cara tão fechada. Janelas abertas para que os olhos enxerguem o resto. Aquele resto que nunca se alcança do andar de baixo. Quando eu subo, eu me sinto alto. E me sinto alto quando a garganta se rende ao doce sabor do álcool. Sim, é aqui que eu mato a poesia e faço dela verdade. Nua, crua, sem ritmo e com frio. Mas ainda assim, alta, superior, na superfície.

Alto, eu consigo finalmente preencher os vazios. Caio nas graças das piores tragédias e me recuso a descer novamente. Assim eu sigo, rumo à porta. Recebo-me, cansado, mas ainda de pé. Ainda alto. E então, a palidez dá lugar ao rubor. Cá estou nós, eu e eu, agora juntos, aquecidos.

A pressão sobe novamente com uma simples gota. Salgada, sutil e ritmada. É o fim do desgosto; o fim do corpo; o fim do copo; e o fim do sono.

É este o começo do choro.

A chuva do lado de fora que me eleva. E me leva novamente para o lugar mais alto em mim.

O coração.