Espaço, precisei e pouco tive.
Tudo apertado, tudo colado, meu barulho no seu barulho, minha orelha na sua orelha, a fronteira entre minha mesa de almoço e a sua - tão curta, com quatro cadeiras, três sempre vazias. A proximidade que reforça a solidão daquele que come sozinho todos os dias, acompanhado só pela fome. O outro lado, com o outro ao lado, é mistério e - ao mesmo tempo - companhia. A vida que não é a minha interessa quando me faz esquecer de como é difícil ser em si. Ser no outro só é mais suave porque podemos voltar quando a casa, literalmente, cair. Eu fico ali, mesmo com pouco espaço, satisfeito. Caibo dentro dele melhor do que dentro de mim. Ou do outro.
Tinta de cal, misturada com bisnaga, aquela do azul melancólico, falhado, esfarelado, manchando os quatro cantos da sala, envenenando nossos pulmões, mas deixando tudo pronto pras visitas. Elas, mais importantes do que nós, os moradores, deveriam desfrutar do melhor que o pior poderia oferecer. Era assim, sempre foi assim e até hoje se mantém. Mostrar o lar pro outro é como mostrar a si para o outro. Não dizíamos "bem-vindo", dizíamos "não repare". A primeira impressão é a que diz quem fica. Viram as costas, temem o sofá, lavam os copos já lavados, medo, muito medo, desconforto, mas o prato que sujaram, este eles não lavam. Ficávamos em casa com a sensação de derrota e vergonha. O outro nos achou feio. Da porta pra fora, as risadas, comentários maldosos e a sensação de viver num lugar bem melhor do que aquele buraco que há pouco lhes acolhia. Você é feio, você é feio, é educado, carinhoso, aconchegante, mas é feio. Eu não quero ser em você e não quero que você seja em mim. Você é feio, como uma casa velha e decadente. E o pé da geladeira está enferrujado.
Rua, caçamba, pedregulho, galho de árvore, mato, carro abandonado, chinelos nos fios, buracos nos postes, asfalto esburacado, casa feia, casa bonita, casa feia, casa mais feia, casa feia, casa bonita, sequência da vida, nós nas arquiteturas da própria rua, entrópicos, diversos, competitivos, contemplativos, unidos pela diferença, pela vontade de ser diferente daquilo que era inevitável: a condição de periféricos. Garrafa de plástico sobre o relógio de luz, sacola de plástico, lona de plástico, mundo de plástico; arroz seco do cachorro, rabiola enroscada nas antenas, esqueleto de peixinho "mandado" no telhado de zinco, vida que pulsa, vida que segue, vida que não é seguida porque dói muito andar sem rumo, vida que persegue outra vida pra chamar de sua... Vidas. Neste espaço, na rua, na minha casa feia, no eu dentro de mim e fora de si, nas loucuras da minha mente sem paredes, no espaço vago em que me escondo toda vez que o barulho da avenida não me deixava acordar pra dormir mais uma noite, eu fico. Eu finco meus pés na minha terra, no meu lugar, no meu ponto de referência - e não só de busão - que antes não passava de um quarteirão rodeado de rivais, aquelas vidas iguais, e perigos. Eu fico, tento, logo resisto. E ainda desejo a melhoria. Eu, aquele de casa feia e fechada. Sem risada.
Das mãos do criador, espero o paraíso. Aguardo por ele, pago por ele, mesmo tendo tão pouco. Aguardo sua chegada, suas mãos gigantescas, calejadas e habilidosas. O criador, o messias, o verdadeiro responsável pela concepção do mundo. Sim, aquele que faz da massa matéria-prima, corrida pra durar 7 dias. Do barro, cria para o homem as condições para criar sua família. Limpa o terreno, nivela o chão, ergue, pouco a pouco, a moradia. Traz luz, traz água, traz terra, traz as condições para existir. O pedreiro, aquele que tem o dom da criação, inquestionável, sabedor do conhecimento (sobre o) concreto, que compreende o pó, a poeira, a areia, o tempo envelhecido nas pilastras, na garganta das ampulhetas, o espaço medido à palma; que domina a alquimia dura do material de construção. Mestre de obras. O verdadeiro mestre de obras. Ele, tão necessário, cria mundos para poder manter o seu. Todas as noites, rezo para ele, na expectativa de que um dia me ouça.
Desejo a parede lisa com massa corrida. Eu desejo a caixa d'água limpa, de plástico azul-sorriso e não de cinza-concreto, para cobrir o veneno que enche o copo e ferve a comida que alimenta o corpo. Quero um portão e não uma porta, quero chuva sem goteira, quero umidade sem infiltração. Quantas coisas eu quis, pedi, vi minha mãe pedir, meu pai tentar fazer. Mas que homem é capaz de reproduzir com exatidão a obra do Criador? No máximo, tapa buracos, faz algumas gambiarras e sobrevive aos dias. Eu não abro mão do meu espaço. Estou tão empregando nele quanto ele em mim. Eu saio dele - todo dias às 7h da manhã - mas ele não sai de mim - há 29 anos.
A esquina é volta para casa. A chave no portão dá volta para casa. Aquele cheiro de costume, indetectável, mostra-me o caminho