A primeira vez que me vi e me senti, existi. Caí da cama e dei com a cara na realidade, marquei o rostro com o estrado amadeirado das estradas percorridos antes sem rumo, agora guiadas pelas vias do tempo. Vi e vivi uma vida que não era a minha, mas a que foi talhada na carne. Da beliche de cima, meus sonhos, expectavas, desejos, minha voz projetada no silêncio de uma oração, o teto de madeira, a lua dentro da lâmpada e as estrelas voando ao seu redor, matando-se incansavelmente. Na de baixo, o peso, o uniforme da escola, os afazeres, as broncas, a rua sempre agitada e cheia de confusão, eu dormindo comigo mesmo. Dois em um. Eu em nenhum.
As vontades eram tantas que sempre me faziam correr em busca do meu pico. Eu subia, subia, e subia em olhar pra trás, na sensação de que estava me aproximando do alto. Só que nunca chegava. Era como achar que seria possível se cobrir com nuvens ou se amarrar em correntes de ar. Foi aí que me desequilibrei e tombei. Lá de cima - que não era topo - eu despenquei. Foi difícil reaprender a andar com os pés e não mais com as ideias. Ainda assim, consegui. Ícaro de mim mesmo, não morri, trouxe lembranças de momentos que nem cheguei a viver, mas quis tanto, tanto que até meus olhos se esforçaram para pintar uma bela imagem do que seria se eu fosse só eu. E era a hora de ser mesmo. Eu.
Foi quando me encontrei... Quando a hora mais doída já não feria mais. Quando o que queimava era meu corpo a desejar o dos outros - iguais em formato, diferentes em sentimentos. Sem toque, sem beijo e troca de olhares, tudo se fez no silêncio da minha boca e barulho da mente. Se por fora eu era uma montanha, calada e paciente, por dentro era vulcão, sempre a reclamar, implodir, lambuzando-me do mais puro magma. Mais uma vez, estava eu em dois - na base e no alto. No pé do vulcão e no alto do morro. Subindo pra depois cair. Elevando e me levando só pelo prazer de então escorrer por entre minhas próprias pernas. Morno.
Foi quando eu me encontrei que descobri o que era se perder. O que era existir em lugar nenhum, só em si mesmo. Ser meio termo que não mais teme nem altura nem profundidade. Que não reclama se pegar a cama de baixo ao invés da de cima. Aprender que é possível transitar e não apenas residir. Que a escada na beliche servia tanto para subir quanto para descer. Que só tomba aquilo que voa e só voa aquilo que levantou do tombo. Eu queria flutuar, não ser mais montanha nem vulcão, ou ser os dois ao mesmo tempo. Eu queria aquilo que tinha acabado de encontrar: um garoto com pele de rocha e coração de lava.
Foi quando eu me encontrei no meio da beliche que pude ficar em paz e desfrutar do sono. Foi quando eu me encontrei dentro da montanha, pulsando como vulcão, que adormeci com meu próprio calor.
Meu próprio calor...