A fome nunca passa. Desde pequenos, a fome sempre esteve com eles.
Chegam os três silenciosamente no local repleto de presas. Os olhos estão opacos, o que lhes permite transitar pelos corpos despercebidamente. Eles reconhecem cada um presente pelo cheiro, pelos movimentos distraídos e aquela fragilidade característica de quem nasceu pra ser devorado. Andam em círculos, separados, mas conectados pela fome. Sempre fome. Três lobos famintos, prontos para caçar, cada um ao seu modo, mas todos com o mesmo objetivo. Comer.
O primeiro desliza entre as vítimas com seu pelo vistoso e rosto manso. Pede carinho, pede mão no pescoço, envolve o corpo ao do alvo e dança livremente. Seus olhos vão se acendendo como chama de vela e causam hipnose imediata. Ele ri sem mostrar as presas - sem assustar a presa. Ela, por sua vez, sente um perfume diferente e treme, deixa ser conduzida, acredita na segurança que aquela criatura bela transmite por meio da respiração calma e paciente. Quem tem pressa come cru. E a fome sabe esperar a hora certa de cobrar seu dízimo. Ele prepara o ataque como se executasse tal prática há séculos. O chamado ancestral não falha e quando o corpo franzino menos percebe, está dentro da bocarra escancarada do lobo. Sangrando de desejo e morrendo de vida. Ele não se farta, busca mais, sempre dançando, sempre usando seu gingado como armadilha. Sempre conseguindo mais do que pode devorar.
O segundo se mantém nas sombras. Observa a movimentação, fixa o olhar penetrante e rosna de leve como se advertisse a todos sobre sua raiva animalesca. Ele deixa claro que está ali pra atacar e sabe que a melhor caça é aquela que se permite ser pega. Como se estivesse farto e bem alimentado, caminha soturnamente entre os pés alheios, sem encostar neles. Quer ser vulto, sombra, mistério e rondar a comida até que ela não aguente de curiosidade e salte em sua direção. Seu ossos são evidentes, um lobo velho e enrijecido pelo tempo. Os olhos refletem uma luz prateada e fúnebre. Olhos de quem promete descanso eterno. De repente, altera-se o ar e o som. Alguém se aproxima dele, rouba de suas costelas arrepios e então puxa suas patas para o próprio quadril. Ele não mira sua visão diretamente para o rosto da vítima. Espera ela suplicar. Quando torna-se insuportável resistir ao "eu-oculto" daquela besta, a presa se oferece. Ele come silenciosamente, sem dividir com os outros dois, só com a fome. E então some.
O último lobo define seu alvo desde o primeiro contato com a multidão. Inseguro quanto a força de sua mandíbula, absorve dos outros dois o "modo de caçar" e se torna completo. Seu pelo espesso e visível impressiona a todos. Seus movimentos leves e repetitivos servem de convite - anunciam a vontade de ser tocado. Nem manso, nem raivoso. Ele é centrado. Aproxima-se da caça, imita seus passos, compreende sua intenção, toca e deixa ser tocado, cai no encanto e esquece da fome. Este é seu diferencial. Dos três, é o único que consegue esquecer da fome e querer da vítima apenas o apego. Quer pertencer, ser de estimação, ser levado pra longe, pra uma casa distante e então permitir-se ser domesticado. Quer abandonar a alcateia para então conviver com aquela criatura fraca e de sorriso duvidoso. Sua barriga estremece, ele uiva de desespero e então morde. Uma única mordida. Sente o sangue escorrendo. O seu. Foi mordido também, Mordido pela própria presa; pelo próprio alimento; por uma criatura diferente de si, mas tão cheia de fome quanto. Percebe então que seu tempo ali acabou. Uiva, avisando para os demais que está partindo.
Vai e leva consigo a fome que não (o) matou.