domingo, 19 de maio de 2024

Se eu dormir agora

Pareço perder a violência no que sinto. A compensação pelo nunca vivido se tornou a promessa feita pelo amanhã que nunca me sabe. Falta algo. Falta tanto, mas algo parece faltar mais. Não que cave buracos, não é isso. A sensação é a de que muito se tem para cobrir o pouco que foi. Eu queria reencontrar a violência no que sinto. Dava alguma cor ao invisível. 

Não consigo explicar a dor nem a raiva. Percebo que inicio sempre o diálogo perdendo o tempo e, ao mesmo tempo, apelando para o outro. Em cinco segundos, lembro-me do céu, da temperatura, se ventou ou se peguei chuva. Assim inicio o tempo pelo tempo, do relógio ao relâmpago. Vou dizendo, mas ainda sem conseguir explicar. Lá parece não doer. Talvez o tempo despendido a tecer histórias pela boca como se minha a língua cozesse, alivie. Não sei, estou confuso - repito isso constantemente quando sou obrigado a falar de mim para o outro. Ele ali, parado, às vezes sonolento, com as cortinas pesando e a visão direcionada a mim, horizontando o nada e tentando me convencer de que não o engano. De que ele sabe do que eu não estou falando. 

Quando anoitece, sou eu e os tantos. Hoje o aperto veio logo depois de um sono mortífero, relaxante, como imagino que seja a partida de quem falece oniricamente. Elaborando a inexistência no único lugar onde realmente somos felizes: no delírio do sonho. Abri a janela, o céu lá. Com costume de criança, olhei, novamente a fabulação, a loucura de falar telepaticamente com o vácuo do espaço. As drogas ajudam, elas tiram a culpa pela insanidade, desespero, pela solidão que nunca é preenchida com a presença do outro. Ele, ali, parado, às vezes mais imaginário do que nunca, pois jamais existiu ou existirá. 

Agora dói. Já soa natural pensar no sofrimento que nunca passa. Agora dói de verdade. Talvez consiga descrever agora. Seria algo assim: 

E quando eu me olhei, revi toda angústia. Lembrei das vezes em que não chorei por vergonha de ruir. Das outras que engoli o choro porque quem me cortava parecia querer-me como coisa, não como gente. Eu sofro quando me recordo que sempre quis fazer o bem aos outros, agradar, ser útil, ajudar, não porque me obrigavam, mas pelo fato de que eu não sabia sentir de outro jeito. Dói quando não me deixo esquecer do quanto de amor que eu sufoquei. Com as mãos em seu pescoço, apertei firme enquanto secavam seus lábios e molhavam seus olhos as lágrimas minhas. Eu o matei poucas vezes, mas todas doeram demais. Pouco é muito quando faz o tudo, o todo e o tanto. 

É um rasgar lento. Vai me abrindo e deixando escorrer nada. Abre e não sai nada. Por que certos pensamentos se repetem sem parar? Sumir, fugir, não existir, isolar, esquecerem-me, deixarem-me, assim é melhor, assim eu sei como é, assim eu sei como é sofrer, assim eu sei como eu sou melhor sofrendo, assim eu sei que é melhor sofrer sendo eu do que o outro. Ele, ali, parado, esperando eu dizer alguma coisa. Eu digo que agora dói. Finalmente, dói. 

Não sinto as linhas do mundo amarradas ao meu corpo. Os laços, os nós, na garganta, em todo lugar, nós, eu e o outro, ele, ali, nós, na garganta, mas eu não me sinto preso ao mundo sendo sua marionete. Eu não sinto aquela ligação que me mantinha nele, com ele. Não sinto mais. Apagaram as luzes novamente. Eu e os tantos apagamos. Deste vez doeu como nunca. Um novo doer, um novo amanhecer igual. Eu desvejo o mundo e nele não me enxergo. Invisível, mas há outros tons. Eles, ali, pintados, um amarelo muito claro, beirando o branco, o outro poeira rosada, o profundo índigo e o azul mais claro remetendo à inocência. Eu acho que estou em órbita, agora na atmosfera, na moleira do mundo, solto. E triste. 

Um balão vagava rumo ao infinito. Não havia mão alguma para segurá-lo. Enquanto existisse nada dentro de si, continuaria. Por onde passava, ninguém. Onde chegava, não há. Quando parava, não ia. Um balão negro que sobrou do mundo. Perdeu a linha, subiu pra cabeça, agora nada. Não se vai longe quando o destino é o infinito. Para sempre lugar nenhum. Nem longe, nem perto. O balão solto. E triste.

Se é algum tipo de doença incurável, não preciso saber. Sei que é porque sinto o que é. Passo as pontas dos dedos sobre o peito, deixo que tropecem nas ondulações ósseas e, então, esvazio os pulmões pressionando-os como se os quisesse reviver. Já não dói mais de tanto que dói. Sem lágrimas dói mais ainda. Sem lágrimas dói como nunca. Dói como nada, como ninguém. Dói tanto com ninguém. Dói como um novo amanhecer igual. Dói como o outro. Ele ali, parado, esperando eu dizer alguma coisa.

- Se eu dormir agora, morro sem dor, como ninguém?

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Este quem aquém

Corri das situações dramáticas. Talvez tenha errado em não recorrer aos caminhos comuns, aqueles tanto indicados pelos outros. Escrevi uma mensagem curta apenas dizendo que precisava me recolher. Não deixei espaço para que oferecessem o pegar dos cacos no chão. Apavorou-me a possibilidade de querem. Num movimento que só eu conheço, aproximei-me e, na mesma velocidade, desapareci. Os poucos que acharam a mim ter alcançado erraram. Sem problemas, desde que não voltem a me procurar. 

As luzes bonitas banhando as calaçadas. As luzes sempre passam pelo meu olhar, mesmo hoje, tempo estranho em que pareço ter me coberto de uma apatia esverdeada feito os contos de Poe. Ainda assim, presto atenção nas luzes. Parecem elas vir com música. Mitski, creio eu, no atual estado de psico que me encontro. Estado em que deixo um elemento de composição sozinho. Estado de abandono. 

E envelheço meio a isso tudo. Distante de uma forma de vigor irritantemente incapaz de aceitar seu fim. Eu já aceitei muito cedo, inclusive quando não tinha nem chances de vencer as tantas vontades que tendem a impulsionar a vida. Os empurrões todos, um inferno, um calor de gelar que parece ter a pressa dos atrasados juntos, esperando uns aos outros. 

De repente eu só quis querer. Tive muitas vontades de me sentir querendo muito do que eu, conscientemente, sei que jamais terei. Quis muitos eles pelo caminho, fui deixando-os sem, às vezes, jamais tê-los tido concretamente. Sabe-se lá por quais motivos minha mente se organizou assim. Quando te ensinam um único jeito de dobrar as roupas, é com essa mania que você seguirá dobrando, ainda que, vestidas, marquem a silheta errada de seu corpo. É o que é, como é, como sempre foi.

Querer tem disso, de desdobrar e não deixar traço que recupere as formas de antes. Por via das tantas dúvidas, acabo passando por onde o ferro desdobra. A sola fica quente, queima às vezes, mas ao menos não desamasso. Pelo menos eu quero sem ser querido. Quem quer gente toda amassada? Se alguém quis, afastei-me antes de sentir o querido em mim. 

Foi-se a poesia que nunca existiu aqui. Foi-se tudo. Foice que cortou até o que nem tinha. Dancei sozinho desde a primeira vez e acho que isso me passou. Daí em diante, toda vez que a tempestade se forma, eu me arrumo pra ficar descalso e amarrotado debaixo do vendaval e só toca meu corpo as ventanias todas.

Medo e raiva de trovão não tive e não tenho. Dancei perto das árvores, não debaixo. A segurança vinha daí. Delas. Sempre delas, as com raízes escuras e firmes, pacientes, centenárias, as antigas que sem medo do céu me permitiram herdar um pouco desta coragem. Só que eu me movimento demais. Não finco tanto. Por isso caí nas graças da fúria, balançando de envergar a espinha.

Desta vez eu sangrei menos. Não por falta de lasco. A verdade é que nunca tive muito o que escorrer e agora sobrou menos ainda. Nunca teve muito o que vazar de minhas brechas além do imenso tudo que eu ainda mantenho apertado naquele canto de quarto que tomo conta na forma da inocente criança que caiu no buraco de barro e de lá sozinha saiu. Sozinha se limpou, mesmo que terra não seja sujeira. Ela, a criança, com o todo imenso e amassado entre suas mãos, um querido, ele, por quem, hoje grande, teme que o queiram. Este quem áquem. É um quem aquém.